Já estamos em setembro e marcou muito a leitura de "Tese sobre uma domesticação", da Camila Sosa Villada. Marcou tanto que a nossa curadora escreveu um conto da vida real inspirada em sua leitura. Por Thaiane Machado

TESE SOBRE A CONFORMIDADE
A vida da atriz parecia saída de um comercial de margarina. A mulher perfeita, casada com o homem dos sonhos, mãe de gêmeos encantadores e dona de uma carreira brilhante. A vizinhança a admirava de longe, como se ela fosse o retrato de tudo aquilo que as revistas femininas prometem, com seus conselhos sobre "como equilibrar trabalho e família" e "o segredo de uma vida feliz". Mas, claro, ninguém perguntava se ela gostava de margarina.
A atriz, de fato, não gostava. Todos os dias, ao acordar naquela casa impecável, ela se via diante de uma versão de si mesma que mal reconhecia. A domesticação, como um moinho invisível, havia moído lentamente suas paixões, até restar apenas um pó fino de desejos esquecidos. A mulher que um dia sonhou em ser livre agora deslizava suavemente pela rotina de ser esposa e mãe, como um pássaro de asas cortadas que se acostumou à gaiola dourada, mas que, de vez em quando, ainda se debatia silenciosamente contra as grades.
E havia o advogado, o marido exemplar, sempre com um sorriso estampado no rosto e uma planilha de Excel aberta no computador. Ele adorava planilhas. Em sua mente organizada, a vida conjugal era apenas mais uma fórmula: trabalho + casa bonita + filhos = felicidade. A equação perfeita, exceto pelos pequenos erros de cálculo que insistiam em aparecer de vez em quando. "Será que você não pode sorrir mais?", perguntava ele, enquanto a atriz se ocupava em não desmoronar.
A ironia, é claro, estava no fato de que a tão cobiçada "vida perfeita" parecia ser um concurso de quem melhor escondia o vazio por trás da fachada. E os gêmeos, essas miniaturas de si mesmos, tão perfeitamente equilibrados na imagem de família feliz, já começavam a pressentir o que não era dito. A menina, com seus olhinhos curiosos, às vezes perguntava à mãe: "Por que você está sempre tão cansada, mamãe?" E a atriz, mestre em fingir, respondia com um sorriso de revista: "Mamãe está ótima, querida, só um pouco ocupada."
A vida, afinal, é um grande teatro, e a atriz desempenhava seu papel com maestria. A peça? "A Vida Ideal". O enredo? Domesticado, previsível. Ela seguia os ensaios, as falas decoradas, mas sempre com a sensação de que um outro monólogo, muito mais visceral, queria emergir de dentro dela. Como o solo árido que há muito não vê chuva, seu espírito se ressecava sob o peso da conformidade.
Ah, a conformidade! Essa inimiga invisível que a cada dia apertava um pouco mais os laços de sua vida. Parecia que todos ao seu redor tinham assinado um contrato silencioso com a mediocridade, em que a verdadeira felicidade era substituída pela satisfação de se encaixar nos moldes. O casamento, os filhos, a carreira – tudo isso servia para mantê-la na linha, na jaula invisível, que se escondia sob a etiqueta da perfeição.
Mas será que essa jaula tinha mesmo trancas? Ou será que Ana havia, de bom grado, aceitado se trancar lá dentro?
Sobre a leitura:
Camila Sosa Villada é uma escritora e atriz argentina que se tornou uma das vozes mais influentes da literatura contemporânea na América Latina, especialmente com sua narrativa focada nas experiências de pessoas trans. Seu primeiro grande sucesso literário foi o livro "O Parque das Irmãs Magníficas" ("Las malas"), publicado em 2019, uma obra semi-autobiográfica que retrata a vida de um grupo de travestis em Córdoba. A obra, aclamada pela crítica, explora temas de marginalidade, identidade e a busca por dignidade em um mundo hostil. Desde então, ela tem se destacado por criar um universo literário único, focado em personagens que desafiam as normas sociais e revelam a dura realidade das vidas marginalizadas, mas também celebram a resiliência e a comunidade. Ela não escreve para confortar o leitor. Em “Tese Sobre Uma Domesticação”, a autora argentina traz uma narrativa feroz e pungente que escancara as complexidades de existir em um corpo travesti em um mundo que constantemente tenta apagá-lo, controlá-lo e domesticá-lo. Villada constrói sua história como uma provocação literária, desafiando o leitor a encarar as diversas formas de violência simbólica e física que atravessam a vida de sua protagonista. É uma obra que não só retrata a exclusão, mas também questiona até que ponto o que consideramos como “aceitação” não é, de fato, uma imposição disfarçada.
A protagonista, uma atriz travesti, é o centro desse universo. Diferentemente de muitas narrativas que apenas destacam o sofrimento das personagens trans, Villada opta por uma abordagem mais complexa: sua personagem é talentosa, admirada e irresistível aos homens que a rodeiam. Ela encarna o que a sociedade talvez aceitasse como um “ideal” de mulher travesti, mas essa aceitação vem acompanhada de uma série de condições. Para ser aceita, para existir nesse espaço de poder e visibilidade, ela precisa domesticar suas emoções, seus desejos e, mais profundamente, sua identidade.
O que torna o livro de Villada impactante é justamente a forma como ele expõe as nuances da conformidade social. A protagonista, em sua relação com o marido gay, que é emocionalmente inacessível a ela, e com o filho adotivo soropositivo, é forçada a desempenhar papéis que não foram pensados para corpos dissidentes como o dela. Assim, a autora revela a violência simbólica e silenciosa que as normas sociais impõem às mulheres trans. Para ser aceita — ou melhor, tolerada — nesse espaço, a protagonista precisa se transformar, ou seja, domesticar-se. E é exatamente aqui que se localiza a crítica principal do livro: o que a sociedade chama de aceitação é, muitas vezes, apenas um processo de controle e apagamento da individualidade.
Os personagens ao redor da protagonista não estão lá para apoiá-la, mas para reforçar as limitações de sua existência. O marido, um homem gay, é um paradoxo: ele a ama, mas esse amor é restrito, como uma jaula. Ele é herdeiro de uma fortuna, belo e admirado, mas incapaz de corresponder ao desejo afetivo e sexual da protagonista. O filho, que deveria ser um símbolo de realização familiar, é, na verdade, uma lembrança constante da precariedade e da fragilidade dessa estrutura. A própria maternidade é questionada: qual é o sentido de ser mãe em um lar que não acolhe suas necessidades e desejos?
Camila Sosa Villada explora a ideia de que mesmo em um contexto aparentemente ideal — marido, filho, carreira e estabilidade financeira —, a violência da exclusão está sempre à espreita. O lar perfeito, assim como o teatro em que ela atua, é um palco de tensões e silenciamentos, onde a protagonista precisa desempenhar o papel que lhe foi dado. Como uma atriz dentro e fora do palco, ela é obrigada a esconder partes de si para manter as aparências. A autora faz um paralelo entre a vida doméstica e a performance teatral, sugerindo que viver dentro desse sistema é como interpretar um personagem que nunca foi escrito para ela. O tema da domesticação é central no livro. O próprio título já sugere uma crítica ao processo de adequação das identidades dissidentes a padrões que nunca foram pensados para elas. A protagonista é domada, assim como os animais selvagens são domados para se tornarem aceitáveis aos olhos humanos. É assim que Camila Sosa Villada representa o espaço que é concedido às mulheres trans: sempre condicionado à anulação de sua verdadeira natureza. Como o trecho abaixo, do capítulo "Monólogo da Mãe", em que a sua mãe acredita que toda a mudança da atriz foi para ser aceita na conformidade.
Eu já estava conformada com os meus cachorros, com meus amantes, com as forças que rodeavam minha existência. E um dia ela largou a prostituição e virou atriz. E outro dia foi o namorado lindíssimo. E outro dia anunciaram o casamento. E um dia me disseram que eu era avó. E algo se rompeu dentro de mim. Eu, que nunca soube amá-la, sabia que ela se normalizava para tranquilizar seu pai a mim. Nunca ninguém tinha feito um gesto desses por mim. - Camila Sosa Villada
Falando nisso, outro tema que se destaca é o da conformidade. A protagonista vive uma vida idealizada, mas que a força a se conformar a um modelo de feminilidade domesticada, onde seus desejos, sua sexualidade e sua verdadeira identidade são constantemente silenciados. Essa conformidade se reflete nas relações pessoais, na forma como ela desempenha o papel de esposa e mãe sem nunca questionar o que isso significa para alguém cuja existência é vista como um desafio às normas sociais. A coragem de existir enquanto mulher trans, no livro de Villada, não está apenas em resistir à violência explícita, mas em suportar as camadas invisíveis de controle e apagamento.
A protagonista ocupa um espaço dentro de um sistema que a marginaliza. Mesmo tendo alcançado tudo o que poderia almejar — dinheiro, carreira, família —, ela ainda é uma intrusa em um ambiente que nunca a reconhecerá plenamente. É o que Villada descreve como o “universo travesti”: um lugar de existência simultânea, onde as conquistas nunca significam pertencimento pleno e onde a sensação de inadequação persiste.
Villada questiona se é possível existir plenamente em um mundo que exige de identidades dissidentes a constante negociação entre ser aceito e ser livre. “Tese Sobre Uma Domesticação” é, assim, uma obra que vai além da narrativa pessoal e se torna um manifesto literário: um grito silencioso contra a conformidade forçada e um questionamento profundo sobre o que realmente significa ser aceito em uma sociedade que ainda vê corpos trans como intrusos em seus próprios lares e vidas.
Leitura obrigatória para quem deseja compreender a fundo as complexidades da identidade e da aceitação, “Tese Sobre Uma Domesticação” é um livro que provoca, desafia e, acima de tudo, resiste.
Ficamos agora aguardando o lançamento do longa baseado nessa obra. Vamos correr para o cinema?
Sigamos!
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