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O peso de um corpo gordo

Foto do escritor: Thaiane MachadoThaiane Machado

Um encontro com o nosso eu. Nem sempre é essa a intenção de uma leitura, mas com “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, esse “date” conosco é algo inevitável pra determinadas mulheres que se reconhecem em um corpo gordo e sabem os olhos que a sociedade tem sobre esses corpos. Por Thaiane Machado













[foto oficial: Bruna, Marie, Cind, Thai, Camila, Amanda, Graci, Márcia, Ju, Imira, Alice e Renata]


Laura é a personagem principal dessa história, que narra a sua adolescência e vida adulta, entre as suas lembranças de vida com os seus pais, entre mudanças em terras moçambicanas e lusitanas. Elementos como pátria, identidade e copo são os principais elementos na obra, que tem um quê de auto ficção: uma declaração de dor, perda e solidão, mas também uma tentativa de eterna reconciliação consigo mesmo, de prazeres a amores.


De origem moçambicana, Maria Luísa é enviada para Portugal pelos seus pais ainda muito jovem, passando grande parte da sua infância longe da convivência de seu pai e mãe. Após a independência de Moçambique, em 1974, seus pais se mudam para Portugal e eles passam a morar juntos em uma casa que acaba sendo o centro de suas memórias. As fases da vida da narradora dão nome aos capítulos através dos cômodos da casa, repleto de memórias de momentos com os pais, descobertas pessoais, sentimentos e cotidianos. Uma descrição que mescla questões históricas – como o 11 de Setembro, Chernobyl, Bento XVI – com as relações sobre o fim de um namoro e a morte de seus pais.

[…] Olhar o David evocava a realidade. Todo esse discurso confirmava a minha impossibilidade de inclusão no mundo feminino. Eu não era uma mulher, mas uma massa disforme de carne sem valor. O David amava-me e rejeitava-me sem distinção. ‘Adoro o peso das tuas mamas’, e sentia-lhes o peso. ‘Adoro o volume da tua barriga’, e lambia-a. ‘Deixa-me morder este naco da tua coxa’, e mordia. ‘Não vás a minha casa. Os meus amigos gozam-me por tua causa.’ E eu não ia. O meu corpo não servia ao David nem a ninguém.” - Isabela Figueiredo

Engana-se quem pensa que o livro pretende levantar uma bandeira sobre a gordofobia. Aliás, não há defesa sobre nada, sobre ninguém. Minto, há sim umas boas cutucadas sobre a construção de nossas auto imagens e que existe ao nosso redor, nos constituindo e formando esse imaginário (quase sempre autodestrutivo). Em todos os cômodos da casa, em que ela passa capítulo a capítulo, embora haja lembranças que muitas vezes parece se distanciar da questão da gordura, temos ali, na verdade, pontuações em que em todos aqueles locais o corpo gordo de Maria Luísa sofreu alguma punição ou razão de sua existência: o corpo gordo em uma sala de jantar em que sua mãe está o tempo todo falando sobre ele; o corpo gordo da cozinha, em que ela assume a sua compulsão por comida, enquanto conta histórias de feituras de “marmeladas” (doce tradicional português); o corpo gordo no seu quarto, com o sexo com o namorado (que a rejeitou por vergonha do seu corpo gordo); o corpo gordo no quarto do seus pais, ao deitar no local vazio ocupado por ele e sentir que ali também dormiu durante anos um corpo gordo como o dela.


Maria Luísa é, também, um poço de contradição na sua forma de encarar a vida. Ao mesmo tempo em que toda a sua jornada pontua as questões do seu corpo, especialmente para o convívio social, ela não se curva, não se deixa humilhar e nem deixa que esse corpo seja um limitador de suas decisões. Maria Luísa é contraditória como nós, que mesmo se sentido rejeitada, não deixa de viver. Acredito que isso seja o motivo do livro trazer um final aberto a inúmeras interpretações, pois é assim também como nas nossas vidas previstas, sonhadas....e quase sempre imprevistas, no final. “A Gorda”, traz uma escrita de si, de nós, de todos os corpos. Só para lembrar, que ela começa o livro nos dando esse aviso: “Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.”

É um livro que fala da vida de alguém que ama, sofre, dorme, acorda. E em meio a toda essa vida que possui muitas questões, existem as que são sobre o corpo". - Isabela Figueiredo em 2018, em uma mesa da FLIP.

O que Maria Luísa nos provoca em sua trajetória, é que a nossa compreensão sobre nós mesmos não há como ser deslocada do olhar do outro. Os corpos gordos ainda são marginalizados nas pequenas coisas: na loja de roupa, no assento do avião, nos consultórios médicos, nos bares e restaurantes...e, principalmente, na busca de um amor e ser amado. Em todas as suas memórias, o corpo gordo de Maria Luísa pesa, mas pesa muito mais para os outros. Pesa quando seu namorado assume ter vergonha de estar com ela e os seus amigos. Pesa quando a sua mãe diz que ela vai morrer se não perder peso. Pesa quando a sua “melhor amiga” da escola a coloca na posição de subserviência.


Ainda que ela tenha decidido fazer uma cirurgia bariátrica, aos 40 anos, ela continua, em sua construção sobre si mesmo, morando em um corpo gordo. Ainda que pareça que ela tome o caminho para amar o corpo que ela recebeu, ela vai continuar morando em um corpo gordo. O corpo gordo tem o peso da uma suposta felicidade, que para Maria Luísa parece ser supostamente atingida depois de uma cirurgia de redução do estômago.


No nosso grupo, a leitura foi contraditória. Entre aquelas que se identificaram, outras que s sentiram enganadas pela capa e título do livro. Mas, no fim, conversamos sobre se cada uma de nós fosse uma Maria Luísa e sentisse o peso do seu corpo em qualquer situação em que a sociedade machista, misógina e gordofóbica nos coloca. Sigamos!


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