O eco das coisas que quase aconteceram, em "O Livro dos Pequenos Nãos"
- Thaiane Machado

- 29 de nov.
- 6 min de leitura
Um ensaio sobre nãos, destino e a arte de experienciar o que não sabemos nomear Por Thaiane Machado

Lia é uma mulher que caminha sem saber que está prestes a atravessar a noite mais estranha da própria vida. Ela sai de casa rumo a um encontro com sua amiga Ana, no Bar Lagoa, point do Rio de Janeiro, mas acaba seguindo um caminho desconhecido. No seu retorno para casa, resolve tomar o caminho guiado pelas decisões das bifurcações. E é nesse deslocamento abrupto, quase onírico, que a história inteira se arma.
A construção do romance de Heloisa Seixas é, antes de tudo, uma construção em camadas, entrelaçadas. Há três movimentos estruturais principais:
a noite de Lia: Lia dirigindo pela cidade, indo ao encontro de Ana, e depois seguindo sem rumo, que a leva para um bairro do subúrbio carioca, seguindo um carro preto. Essa linha funciona como trilho para todas as outras. É nesta noite que as lembranças emergem, os traumas ressurgem, a culpa ganha contornos e a revelação final encontra espaço para se manifestar;
a história de Lia e Tito: cada situação da noite convoca um trecho deles dois, um toque, uma briga, um silêncio...O romance mistura passado e presente, criando uma arquitetura de sobreposições emocionais, em que os acontecimentos atuais ecoam os antigos, como se a vida insistisse em repetir seus padrões;
e os “nãos” que salvaram vidas: os episódios independentes dos nãos que salvaram vidas, o médico José Alexandre (1897), Mariá e a cascavel (1912), Angélica e os óculos de Lampião (1935), Délio e o fumo de rolo (1948). Eles entram no livro como microfábulas do acaso, pequenas narrativas que poderiam existir isoladamente, mas que, dentro do romance, ganham a função de mostrar que a vida é um tabuleiro cheio de desvios invisíveis.
São histórias que falam do que quase aconteceu, do que ficou suspenso, dobrado, adiado, engolido. Ao lado da história de Lia, surgem outras narrativas breves em que personagens escapam da morte por causa de nãos involuntários. Um médico que vai buscar gazes e, nesse intervalo ínfimo, deixa de cruzar com a bala que tirou a vida do colega. Uma menina que carrega óculos parecidos com os de Lampião e, por isso, não é levada pelo bando. Um menino que decide trocar de avião porque alguém lhe oferece fumo de rolo. Uma criança salva pelo chocalho de uma cascavel que avisa antes de atacar.
"- tem gente que acredita em destino. - Mas essa é a explicação fácil, Ana. Difícil é entender o caos, pensar que pode existir um deus perverso e manipulador chamado Acaso mexendo as cordas por mexer. Isso é que me intriga. Os pequenos nãos que mudam as histórias. 'Não vamos pela rua da Quitanda...' - disse Lia repetindo a frase do poeta" - Heloisa Seixas
Heloisa Seixas escreve como quem entende que a vida não se organiza em linha reta e, à sua maneira silenciosa, faz uma investigação sobre os desvios que nos constituem. Sobre como, às vezes, uma vida inteira se reorganiza por causa de um detalhe mínimo: um atraso, um tropeço, um objeto esquecido, um pressentimento ignorado. Ou seja, os pequenos nãos cotidianos, tais como a recusa involuntária, a demora que irrita, a porta que emperra. E, quando uma dia nos damos conta, percebemos que foram justamente essas interrupções, essas minúsculas negativas, que nos desviaram do abismo ou nos empurraram para dentro dele.
Os “pequenos nãos” são o eixo do romance não apenas como escolhas explícitas, mas como pequenas interrupções da vida. Não são as grandes rupturas que definem a narrativa, e sim as negativas quase imperceptíveis. Ao revisitar esses nãos, Lia percebe que eles formam uma linha do tempo paralela, a vida que não vivemos, simplesmente por não saber como seria (e se...?). Os “pequenos nãos” são, no fundo, a nossa biografia secreta. Ao mesmo tempo, há tentativa de problematizar a ilusão de controle. Lia dirige pela noite acreditando que revisita escolhas, mas o que encontra é o tabuleiro do acaso. O acaso aparece como personagem silencioso, moldando a história com a mesma força dos gestos deliberados. Ou seja, o que no instante parecia aleatório, décadas depois parece inevitável. O livro instaura essa oscilação entre o que escolhemos e o que nos escolheu, entre o que dirigimos e o que somos levadas a atravessar.
"Parado na escada, percebe que seu corpo congelou em meio ao espaço também frio, de pé-direito alto e linhas modernistas. A frase que ouviu continua ressoando dentro dele. Não podia ser outro. Era o avião em que deveria estar. O cheiro do fumo de rolo o salvou" - Aline Bei
[spoiler]
O que ficamos sabendo nas páginas finais é que Lia é sequestrada, depois de ser dopada com um "boa noite Cinderela", por um desconhecido - na verdade, ela se joga no desconhecido ao seguir um carro preto que a leva para um região desconhecida por ela, o Viaduto de Madureira. No final do livro sabemos que antes de ele ir se encontrar com Ana, Tito foi ao seu encontro e, ao ir embora, Lia não avisa-o sobre o elevador social estar com defeito. O encontro com o sequestrador muda nela o sentimento de culpa pela possível morte de seu ex-namorado Tito. Essa história ela conta ao sequestrador, é a última história do livro, da microfábula, que acontece no ano de 2018, no tempo presente (ao contrário das outras).
Lia se ilumina tragicamente na percepção de que, às vezes, um “não” não salva, especialmente aquele que não foi dito. Ele vive, inicialmente, com a culpa de, possivelmente, ter matado Tito. Um não que ficou preso na garganta e que, se tivesse sido pronunciado, talvez tivesse segurado Tito no chão firme, longe do elevador quebrado que pode ter sido o seu destino. Esse tema fala de uma dor muito humana, que é a sensação de que poderíamos ter evitado o pior, de que havia algo mínimo capaz de mudar o curso da vida. E, porque não fizemos, carregamos o peso da responsabilidade pela fatalidade.
Entretanto, em Lia esse sentimento foi mais que isso, foi a forma de se livrar daquele que sempre a machucou. O livro conduz o leitor a acreditar que a culpa de Lia é justificável. Ao mesmo tempo, o encontro com o sequestrador se transforma, ironicamente, na única fresta onde ela finalmente fala. Ao narrar pela primeira vez a história do elevador quebrado, ela desmonta a própria fantasia de culpa. A confissão, dada a alguém que não deveria ouvir nada, faz Lia entender que não é o sequestro que a aprisionava, e sim a história que ela não havia se permitido contar, nem mesmo à sua amiga Ana.

E, falando do tema do ano de 2025, experienciar, Heloisa Seixas nos dá uma história que acontece. Experienciar, neste livro, é viver pelo que a lógica não previu, pelo que você jamais chamaria de destino…mas que, quando chega, parece carregar um mapa do que faltava em você. Lia é o melhor exemplo disso. Ela segue um carro que não deveria seguir, é sequestrada por alguém que não deveria conhecer, conta sua dor a um estranho que não deveria escutar. E, no entanto, é ali, na curva mais improvável da noite, que ela encontra a versão mais verdadeira de si.
EXPERIENCIAR, aqui, é descobrir que a vida se abre nos lugares que a gente mais teme, que às vezes é o desconhecido que devolve a nossa voz, uma conversa impossível pode desfazer a culpa mais antiga, e que o alívio pode nascer na beira do perigo. Tudo no romance nos lembra que a existência é um mosaico de encontros improváveis. E é por isso que este livro conversa tão profundamente com o nosso tema do ano. Porque experienciar é atravessar relações que nos desorganizam, reconhecer que a vida muda de direção sem pedir licença, acolher o que chega torto, o que chega fora de hora, o que chega com medo, mas ainda assim chega.
E talvez este seja o brilho secreto deste romance: ele nos lembra que existem encontros que não salvam, mas transformam. Existem laços que não duram, mas despertam. Existem desvios que não fazem sentido nenhum, até o momento exato em que fazem. Porque, no fim, experienciar é aceitar que há vidas que só começam depois do susto. E Lia, finalmente, começa a dela ali, na noite mais improvável, no diálogo mais inesperado, no pequeno “não” que ela nunca disse, mas que a vida disse por ela.





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