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Onde a palavra finca raiz: a travessia de “Verdades de Papel”

Há livros que se impõem pela força da linguagem. Outros, pelo enredo, pelo impacto ou pelo tema urgente. E há ainda aqueles que fazem tudo isso, mas de modo silencioso, como quem planta sementes numa terra boa Por Thaiane Machado

O clube do livro do bunker















Verdades de Papel, segundo livro de Analu Leite, é uma narrativa que reverbera, como as memórias que ela convoca — vivas, densas e nunca inteiramente apaziguadas. Ambientado no sul da Bahia, após a decadência das lavouras de cacau, o romance parte de uma lacuna histórica e literária raramente ocupada: o que veio depois do ciclo glorificado por Jorge Amado? O que aconteceu com os trabalhadores da terra, com os filhos e filhas dos que sustentaram o apogeu e herdaram a crise do cacau? Analu Leite responde a essas perguntas não com tratados históricos, mas com a trajetória sensível de Rita de Cássia — mulher negra, filha de trabalhadores rurais, sobrevivente do apagamento, deslocada de sua terra por forças maiores do que ela podia compreender.

Um romance que caminha como quem pisa descalça em terra vermelha e sente cada pedrinha, cada rachadura, cada memória que insiste em brotar do chão. A narrativa segue os passos de Rita de Cássia, uma mulher negra, filha de trabalhadores rurais do Sul da Bahia, nascida entre lavouras de cacau já adoecidas pela praga da vassoura-de-bruxa e por um modelo econômico que rapidamente deixou de servir àqueles que o alimentaram com o corpo. Quando criança, Rita aprende a ler de forma intuitiva e encantada, fazendo da palavra um refúgio e uma forma de resistir ao entorno duro. Mas um episódio traumático a obriga a deixar a fazenda e migrar para a periferia de Salvador, onde cresce sob os cuidados de uma tia e aposta todas as fichas na educação.


É com esse fio de sobrevivência que ela chega à universidade e, anos mais tarde, torna-se uma respeitada doutora em Educação. Tempos depois, ao ser chamada para implantar uma escola-modelo em sua região de origem — projeto patrocinado por uma grande empresa de celulose — Rita se vê forçada a voltar. Ao pisar novamente no chão que a formou, ela precisa encarar silêncios familiares, memórias traumáticas e a tensão entre sua formação intelectual e os modos de vida que um dia tentou esquecer.


Mas a proposta vem com mais espinhos do que flores. Por trás do projeto pedagógico, há interesses de expansão das monoculturas de eucalipto, alianças com o poder público e a tentativa de apagar o modo de vida das comunidades locais. E é nesse cenário que Rita precisa confrontar não apenas os fantasmas do passado, mas também sua posição no presente: quem é ela agora, e o que ainda resta da menina que lia para se proteger do mundo?

"A verdade que gostaria de evitar é que não desejava pôr novamente os pés em Era Nova, especialmente no Distrito de Mata Escura, de onde havia saído como uma refugiada de guerra, indo abrigar-se na periferia de Salvador. Saiu não por desejo seu, mas por que precisou sair. Para tornar possível a vida. Voltar para Mata Escura seria flertar com os ecos de uma existência limitada por essa criança, por ser pobre e ter nascido mulher" - Analu Leite

Analu Leite constrói uma escrita que tem cheiro de mata, textura de papel úmido e a cadência de quem sabe narrar com o corpo. A degradação ambiental, o avanço das monoculturas, o esvaziamento das comunidades rurais, o uso da educação como estratégia de propaganda — tudo isso está presente. A crítica social é costurada nas camadas da personagem, em sua tensão entre pertencimento e deslocamento, entre a terra que ama e a lógica do capital que ameaça apagá-la.


Verdades de Papel é, acima de tudo, um convite ao mergulho. Não um mergulho raso, de superfície, mas aquele que exige fôlego, tempo e coragem para afundar nas águas turvas da própria história. Rita de Cássia tenta se afastar das lembranças, da terra e do passado, mas a memória, como a mata, sempre encontra um jeito de crescer por dentro. A leitura nos levar a pensar que permitir é tocar o que ainda dói, olhar para os nomes esquecidos, para a menina que lia escondida, para os cheiros da terra que agora abriga e ameaça. É saber que o conhecimento pode salvar, mas também pode servir a projetos que não são os nossos, que nem toda escola ensina, e nem todo progresso constrói. É nessa travessia que descobrimos que o que parecia enterrado ainda respira e que as verdades, mesmo quando feitas de papel, têm peso.


Uma discussão linda que nos levou à revisitar memórias individuais e coletivas. E nos levou também a uma alegria imensa pelos três anos de Beer And Book.




 
 
 

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