No romance de Aurora Venturini, uma narrativa visceral e disruptiva expõe as dores da família, da exclusão e da violência, revelando a força da arte como refúgio e resistência. Por Thaiane Machado

Por trás da escrita desconcertante de "As Primas", Aurora Venturini constrói uma obra visceral que desafia convenções literárias e convida o leitor a confrontar os aspectos mais sombrios da existência. Publicado em 2007, quando a autora tinha 85 anos, o romance é uma obra-prima tardia que une crueldade, humor negro e uma abordagem radicalmente honesta sobre família, deficiência e violência.
Ambientado na Argentina dos anos 1940, o romance é narrado por Yuna, uma jovem com deficiência cognitiva que observa e registra, com uma visão ao mesmo tempo inocente e perspicaz, a vida disfuncional de sua família. A escolha de Yuna como narradora é uma das grandes ousadias de Venturini. Sua voz singular, com sintaxe precária e oralidade fragmentada, não só desconstrói a ideia de narradores confiáveis, mas também desafia o leitor a entender um mundo onde linguagem e sentimentos se entrelaçam de forma quase primitiva.
Yuna vive em uma família marcada por pobreza, abuso e doenças. Sua irmã, Betina, é cadeirante e apresenta uma deficiência física e mental severa, sendo um dos muitos personagens que exemplificam a vulnerabilidade extrema das mulheres no romance. A mãe, professora, mantém a família com rigidez, mas também com evidente desprezo por Yuna e Betina. Além delas, há as primas Carina e Petra, que enfrentam suas próprias tragédias: Carina, após sofrer abusos, é forçada a um aborto clandestino; e Petra, uma jovem de baixa estatura que se prostitui desde a adolescência, busca vingança pelos abusos sofridos.
O estilo literário de Venturini é tão provocativo quanto os temas que aborda. A narrativa de Yuna, desprovida de ornamentos e repleta de oralidade, evoca um realismo grotesco que parece desafiar as normas da literatura tradicional. A escolha de uma linguagem direta e crua reforça o impacto emocional da leitura, ao mesmo tempo em que expõe as contradições e complexidades de seus personagens.
Algum mau-olhado devia perseguir minha família por que as priminhas imbeciloides frequentavam escolas de deficiência e uma delas tinha seis dedos em cada pé e uma excrescência na mão direita que quase parecia um dedinho a mais. Só que não. - Aurora Venturini
O humor negro, por sua vez, é um elemento central da obra. A autora consegue, de forma desconcertante, transformar tragédias em momentos de ironia e sarcasmo. Essa abordagem, longe de minimizar o sofrimento dos personagens, intensifica o desconforto do leitor, obrigando-o a rir em meio à dor.
"As Primas" é, antes de tudo, uma obra profundamente feminina. Não no sentido tradicional de exaltar virtudes ou celebrar conquistas, mas em sua exploração crua e muitas vezes perturbadora das violências estruturais impostas às mulheres. As personagens são excessivas, maltratadas, mas também resistentes à sua maneira. A ausência de heroínas tradicionais torna o romance ainda mais autêntico, refletindo as realidades de quem vive nas margens.
Entretanto, é importante observar que o pessimismo da narrativa pode ser um desafio para leitores que buscam redenção ou soluções. Sobreviver já é, por si só, um ato de coragem, uma vez que a narrativa não oferece alívio, apenas uma janela para um universo onde a monstruosidade e a humanidade coexistem de forma inexorável.
"As Primas" é um romance que exige do leitor não apenas atenção, mas também disposição para confrontar os aspectos mais sombrios da condição humana. Aurora Venturini, com sua escrita ousada e provocativa, deixa uma marca indelével na literatura contemporânea, lembrando-nos que, às vezes, as histórias mais perturbadoras são também as mais necessárias.
A reunião sobre o livro foi intensa e cheia de reflexões profundas. O debate sobre as complexas relações familiares do livro provocou discussões calorosas, especialmente sobre os papéis das mulheres na história e como elas enfrentam suas adversidades. Ficou claro que a obra gerou um misto de desconforto e admiração, mostrando-se uma leitura desafiadora, mas profundamente enriquecedora.
A experiência foi unanimemente descrita como transformadora, reafirmando o poder da literatura em abrir caminhos para novas perspectivas e autodescobertas.
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