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Todas as camadas de "A Cachorra", de Pilar Quintana

Foto do escritor: Graciela MedeiroGraciela Medeiro

Como diz a escritora Tati Bernardi, "A Cachorra", é "incomodamente honesta". A Thai, moderadora do grupo, disse que era uma "simplicidade complexa". Cabem as duas definições, pois Pilar Quintana não economizou sentimentos, dos mais diversos, nesse livro - que parece singelo, mas é soco no estômago.


Por Graciela Medeiros


[foto oficial: Alice, Amanda, Adriana, Bruna, Cind, Graci, Ju, Karol, Márcia, Marie, Paty, Renata e Thai]  A cachorra, logo de início, é um livro que choca, pois o enredo, envolto na escrita direta e crua da autora, trata de temas delicados com a mesma rapidez com que pode gerar reflexão profunda sobre aqueles mais sensíveis ao leitor. A narrativa permite discussões sobre o maternar, afetos rasos – e a falta de qualquer afeto – na infância e fase adulta, relacionamentos amorosos e familiares conturbados, servíveis apenas para preencher expectativas sociais, e a relação da personagem principal com um animal doméstico. “A cachorra”, atemporal, prende a atenção do começo ao fim, apesar (e por ser) um retrato de violências diversas.

Pensou que ninguém nunca iria confundi-los com os donos. Eram uma cambada de negros pobres e malvestidos usando as coisas dos ricos. Uns insolentes era o que as pessoas pensariam - Pilar Quintana

Escrito pelo celular, durante o puerpério da autora colombiana Pilar Quintana, nos intervalos da amamentação de seu primogênito, o livro narra a história de Damaris, uma mulher que nasceu e cresceu num povoado costeiro, local de férias de famílias abastadas, para as quais os nativos trabalhavam com a mesma subserviência e resignação que marcavam suas vidas no local. Damaris, que esperava casar e ter filhos, assim como naturalmente ocorreu com sua prima de língua ferina Luzmila, não consegue engravidar após sua união com Rogelio, “um negro grande e musculoso, com uma cara zangada permanente”, cujo trabalho como pescador garantia à mulher períodos de solidão no casebre em que moravam.


A compreensão resignada da infertilidade – era “seca”, como repetia sempre - leva Damaris a adotar uma cadela, a quem dá o nome de Chirli e passa a dispensar o afeto e atenção que seriam dados ao filho que não consegue gerar. A cachorra, contudo, vagueia livremente entre o casebre no rochedo e o centro do povoado, trazendo à tona em Damaris uma confusão de sentimentos escondidos e resultantes de outras situações de vida, como o convívio na infância com o pequeno Nicolasito, a culpa pelo que ocorreu com a criança, o castigo impingido pelo tio Eliécer, a passividade (fruto da cultura machista) da tia Gilma - acontecimentos que resultaram na inexistência de segurança afetiva e autoestima na personagem central.


O ambiente castigado por chuvas torrenciais e cercado por mata densa, cheia de perigos animais, se torna ele próprio um personagem, a todo tempo utilizado pela autora como uma provação aos demais, que descem o morro e atravessam rochedos para chegar ao centro da vila, pescam em alto-mar, se embrenham na mata escura e úmida para ir às casas dos patrões e procurar a cachorra, que foge do casebre de Damaris e Rogelio quando bem entende. O final brutal do livro traz o fechamento do próprio ciclo da personagem central, como uma catarse necessária frente à magnitude da repressão de sentimentos de toda uma vida. É escancarada ao leitor a possibilidade do agir feroz, bestial, possível de ser realizado por qualquer de nós.

Consternada, soltou a corda e olhou a cachorra morta, a poça alongada de urina e a corda estendida no chão feito uma cobra. Observou tudo com horror, mas também com uma espécie de satisfação, que era melhor não reconhecer e enterrar debaixo das outras emoções. Exausta, Damaris sentou-se no chão - Pilar Quintana

A leitura flui rapidamente, podendo gerar desconforto em quem gosta e possui animais de estimação. Vale a pena, apesar disso, para chamar nossa atenção ao outro e suas diversas facetas, aos nossos desejos e à validação das nossas escolhas. O encontro do mês teve choro, emoções dúbias, raiva e empatia por Damaris e pela cachorra, mas deu espaço à vontade de falar sobre nosso lado maternal e suas dificuldades (a “maternidade real” em contraponto à maternidade idealizada das redes sociais), das diferenças sociais e das violências sofridas pela mulher. Discussões necessárias e que sempre rendem lágrimas de libertação e conforto entre nós.

Boa cerveja e um amigo oculto de livros maravilhosos, regado a bebidas, trouxeram de volta a leveza ao resto do encontro!


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