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Sempre haverá um tapete vermelho estendido?

Foto do escritor: Cind BandeiraCind Bandeira

Primeira vez que lemos um livro-reportagem. Nesse caso um relato sobre assuntos que parecem tão distantes de nós, mas que faz parte de nosso convívio em sociedade. Chico Felitti nos mostra o ontem, mas também um tempo presente. Por Cind Bandeira/Thaiane Machado

[foto oficial: Adriana, Bruna, Cind, Imira, Paty e Taís] "Rainhas da Noite" é um livro é regado de sentimentos controversos tanto para quem viveu na pele as história relatadas, quanto para o leitor. Tem desde gestos de tamanha sensibilidade e empatia até o mais perverso, mesquinho e violento. Em uma São Paulo da década de 1970, existia uma máfia de travestis que tinham armas e cafetinavam mulheres. Eram travestis ricas, vítimas de violência e transfobia, mulheres tão abandonadas pela sociedade que a criação de um Estado só delas foi quase que compulsória. Algumas perguntas ficam ao decorrer da leitura, entre elas: qual é o limite quando o que está em jogo é a sobrevivência? De antemão, podemos responder dizendo que o ser humano nunca é só bom ou só ruim. Jaqueline Blábláblá, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan foram sim más e boníssimas quando eram para ser. Amadas por umas, odiadas por outras e temidas por todas, as "Rainhas da Noite" não só viveram horrores - o preconceito por serem travestis e suas mortes em situações de violência -, mas também viveram uma vida de muito luxo e poder, com a cidade de São Paulo aos seus pés. Chico Felitti relata a violência arquival que vai desde a década de 70 até a virada dos anos 2000, período em que não se falava sobre essas mulheres.

Os poucos papéis que restam sobre a vida de Jacqueline, Andréa e Cristiane são boletins de ocorrência e processos por crimes como estelionato, notícias de prisão e de mortes publicadas na capa de tabloides, ou noticiadas timidamente por jornais. As três são vítimas do que hoje se chama de violência arquival. - Chico Felitti

Vou começar a reflexão sobre esse livro apresentado essas três grandes rainhas. Começando com Jaqueline Blábláblá, uma das primeiras de sua geração a se prostituir. Foi pra Europa e voltou cheia de dinheiro para abrir um salão de beleza só para atender travestis, transformistas e pessoas trans da época. Com o passar do tempo, esse salão se tornou um bordel famoso, em frente à igreja da Consolação, frequentado por gente da TV e políticos. Se tornou riquíssima a ponto de tomar banho de champanhe e trocar de carro todo ano. Num dado momento da vida, ela decide "destransicionar", volta a se apresentar como Jacque, deixa a barba crescer e tira os peitos. Andréa de Mayo nasceu num ambiente de televisão e rádio - sua mãe era faxineira de estúdio - e chegou a participar de alguns programas quando criança, se apresentando com identidade masculina até a sua juventude. A sua carreira artística não foi pra frente e ela escolheu outro negócio: dava golpes na compra de imóveis que futuramente iriam servir de república para suas filhas/prostitutas que ela cafetinava. Andréa chegou a ter 20 casas em São Paulo, ostentando pela cidade com sua limusine e seu fiel Al Capone (uma espécie de "cão de guarda"). Se tornou dona da boate Prohibidu’s, um local para travestis se divertirem, afinal “é proibido ser viado nesse país”. A Prohibidu’s não era como as outras boates de São Paulo, em que eram proibidas de entrar ou quando aconteciam, estavam ali para apresentar. Andréa também ajudou muita gente: angariou dinheiro para cuidar de pessoas que tinham HIV/Aids - muitas delas pegaram a doença do século e foram perseguidas pela polícia acusadas pela sua transmissão. Cristiane Jordan, ou Cris Negão, era meio miliciana, segurança das prostitutas, ocupando o lugar dos policiais que as perseguiam. Apesar de ter sido oprimida em casa, por seu jeito delicado, aos 12 anos conheceu um homem que a convidou para tomar um sorvete, declarou o seu amor e a chamou para morar com ele. Fugiu de casa, foi aliciada, tornou-se vítima de cárcere privado e foi levada para um orfanato depois da prisão desse "grande amor", por crime de pedofilia. Mas, o orfanato não seria o seu lugar. Sua fuga a leva para as ruas quando começa a se prostituir e ser explorada por homens em hotéis. Sua história de vida, afinal, não lhe tirou toda sua generosidade. Cris bateu e tirou dinheiro de muita gente, mas é capaz de entregar um envelope cheio de dólares para uma pessoa que estava morrendo e passando necessidades. O que há em comum na história de Jaqueline, Andrea e Cris? A primeira é morta por tiros dentro do carro no centro de São Paulo, a segunda morre na mesa de um cirurgião clandestino após se submeter à retirada de silicone industrial das nádegas e de suas coxas, Cris foi assassinada com dois tiros na cabeça - um crime nunca solucionado e descrito por quem presenciou a cena como um momento mágico. Três travestis reféns da violência, por suas escolhas e seus corpos socialmente não aceitáveis.

Toda história tem muitos lados. Este é o lado delas. - Chico Felitti

Chico Felitti conta a história de personagens complexas que foram violentadas física e emocionalmente por todos que deveriam protegê-las. É fácil associar essas mulheres a seus crimes, mas elas também tiveram que conviver com seus medos e suas dores, a violência extrema, a normalização do abuso e a perseguição de agentes públicos. Elas tiveram de aprender a sobreviver na marginalidade. Travestis não podiam entrar em restaurantes nem salões de beleza e táxis não paravam para elas. Elas não eram artistas, eram travestis. O abandono da sociedade tem o limite da hipocrisia, do prazer e da luxúria porque as pessoas que as invisibilizavam eram as mesmas que as procuravam para saciar seus desejos reprimidos.

Jaqueline, Andréa e Cris se reconheciam como mafiosas e não havia brigas entre elas porque cada uma tinha o seu espaço e poderes definidos. A vivência dessas rainhas contraria as estatísticas, a vida que já estava escrita para elas, afinal, tudo aquilo que tiveram e viveram foi um sucesso dentro das possibilidades que tinham desenhado para elas. Contudo, 50 anos após essa história, nós ainda somos o país que mais mata pessoas trans no mundo. Como conta o autor, o relato parte sobre o relato delas, a partir de um ponto de vista nunca antes contado de forma pública. Entretanto, quais as questões implicadas nessas rainhas que levam a esse limite entre a sobrevivência e a opressão entre os seus pares? Imagina-se que a regra para um ambiente hostil seja o despertar do instinto de sobrevivência. Mas, como deslocar isso da violência que as posições de poder permite, ainda que o opressor passem pelos mesmos caminhos sociais não aceitados. Cheguei ao vídeo "Quem tem medo de Cris Negão" e o que chama a atenção sobre isso são os comentários deixados por outras travestis na página em que o vídeo está hospedado. Confere o vídeo aqui e vai lá dar uma espiada.

Estamos bem no início das conversas sobre esse universo. Espero que possamos abrir mais as portas e nos aproximar dessas discussões tão importantes para o nosso crescimento crítico e social. Sigamos!


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