Um silêncio que carrega o peso do tempo, em "Ojiichan"
- Thaiane Machado
- 28 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: há 4 dias
Em Ojiichan, Oscar Nakasato nos conduz por uma narrativa delicada e devastadora, que trata da velhice sem maquiagem, com todas as suas dobras, perdas e silêncios Por Thaiane Machado

Algumas histórias não chegam com estardalhaço. Elas pousam como um silêncio que se instala numa casa antiga, como um corpo que se curva devagar, sob o peso dos anos e das memórias. Ojiichan, de Oscar Nakasato, é esse tipo de livro. Um mergulho, por vezes desconfortável, na experiência de envelhecer. Mas não o envelhecimento dos comerciais de margarina ou das campanhas que dizem que “a idade é só um número”. Aqui, o tempo tem rugas, tem lapsos, tem saudade de coisas que a gente não lembra mais.
"Ojiichan", que em japonês quer dizer avô, abre a narrativa no dia 8 de julho de 2014, onde coisas importantes acontecem na vida de Satoshi, o brasileiro morador do Paraná, que completa setenta anos naquele dia. Por isso mesmo, ele se despede da escola onde passou as últimas décadas como professor, vítima das regras da aposentadoria compulsória pela idade. Sente-se ainda cheio de vida, com muito a dar, apto a continuar ensinando. Mas não consegue nenhum jeitinho de permanecer na ativa.
É o reflexo perfeito do que Satoshi sente dentro de si. Ainda nos momentos iniciais do livro acompanhamos sua viagem, de retorno da cidade de São Paulo, uma viagem de pêsames à irmã, viúva recente. Mas ao chegar em casa descobre que a jabuticabeira que havia plantado no jardim, há mais de trinta anos, havia sido derrubada, a mando de Cecilia, sua filha. Estranha o jardim sem a árvore, sem o aconchego e o prazer que ela lhe dava. Assim é, então, o marcante começo de uma nova etapa na vida do professor. A frase que abre o livro é sucinta, mas nos dá o conteúdo inteiro do que presenciamos. Ela introduz de maneira direta e simples o dilema de Satoshi:
Um homem está velho quando não consideram mais a sua opinião. - Oscar Nakasato
As perdas de Satoshi não se limitam aos acontecimentos narrados acima. Sua mulher, companheira de vida, sofre, há tempos, de demência, perdendo significativamente a memória. Com esse vácuo, vão-se os momentos de companheirismo do casal, as referências mais íntimas. E ainda, mais adiante, Satoshi perde inesperadamente a filha, Cecília, que havia se dedicado a cuidar da mãe doente. Essa é a perda que o faz forçosamente reestruturar a vida. Novos rumos, inesperados, o levam a sair de casa e mudar-se para um apartamento, o primeiro de sua vida, um lugar apertado, para onde não consegue levar nem mesmo seu cachorrinho Peri. Em um pequeno espaço de tempo, tudo que conheceu, tudo para o qual trabalhou, se desfaz. Uma nova vida, nascida a fórceps, com diferentes estruturas, surge. Satoshi aprende à medida que ela se desencadeia.
Satoshi, o protagonista, cuida da esposa Kimiko, que já não sabe quem é. Ele também esquece, mas de outro jeito. Esquece como era ser visto, como era ser desejado, como era fazer parte do mundo. E nesse vazio que se forma ao redor (e dentro), ele se aproxima da cuidadora Akemi. Um desejo mal endereçado que o livro não mascara, mas nos coloca diante do incômodo, da ética, do limite.
"Parecia que estava descendo uma ladeira, e não havia meios de subir...e nem mesmo de parar de descer - Oscar Nakasato
A narrativa é seca, contida, como o próprio Satoshi. Não há grandes revelações, apenas o desfiar dos dias. Mas é nessa contenção que mora sua força: o autor não precisa gritar para nos fazer sentir, ele apenas mostra. Um ponto alto do livro é a importância dada aos amigos em um momento da vida em que poder contar com o outro se torna um afago. Estela é uma personagem que, com poucas palavras, representa a solidão compartilhada, o acolhimento possível entre desconhecidos e a presença sutil de empatia no cotidiano dos idosos. Sua existência na trama reforça o tema da velhice como um lugar de encontros silenciosos, pequenas solidariedades e rotinas que se cruzam em apartamentos vizinhos. Ela ajuda a compor esse cenário em que o envelhecer é permeado por fragilidades e gestos de cuidado mútuo. Com delicadeza, lemos sobre a a importância da amizade de Satoshi com Hiroshi e Altair, três homens que envelhecem, cada um a seu modo, mas que compartilham histórias e memórias que os conectam. A amizade com o vizinho Altair é marcada por lembranças do passado e reflexões sobre a passagem do tempo e, ao mesmo tempo, cultivar amizade com seu velho amigo Hiroshi é lembrar sobre as vivências passadas e presentes. Conexões que revelam como as amizades servem como apoio, testemunho e lembrança de quem fomos, mesmo quando o presente parece nos dissolver.
A presença de Akemi é um bálsamo nos questionamentos sobre o que sustenta um vínculo quando tudo parece ruir. A relação entre Akemi e Kimiko traz à tona o tema do cuidado cotidiano como um gesto de resistência e afeto. Akemi, cuidadora contratada, vai além das tarefas práticas e constrói uma conexão com Kimiko baseada na escuta, no toque e na tentativa de manter viva a subjetividade da paciente. Como cuidar do outro sem apagá-lo?
E é também através dessa relação que se expõe a masculinidade envelhecida: homens que já foram os provedores, os que tomavam decisões, e agora lidam com a fragilidade do corpo, com a invisibilidade social, com a dor de não se sentirem mais úteis. Satoshi teve um caso com Suzana. A traição, antiga, é revelada com a mesma naturalidade com que ele narra o desinteresse por sua esposa, Kimiko, adoecida, ausente, “incômoda”. Quando Akemi chega, não é apenas o cuidado que passa a orbitá-lo, mas também o desejo. Um desejo que se instala na rotina, na intimidade do dia a dia. Satoshi não se apaixona por Akemi, ele deseja tudo que ela representa: juventude, escuta, presença. No fundo, ele quer voltar a ser desejado.
Ouvia, também, uma movimentação no quarto ao lado. Akemi devia estar inquieta, ainda desacostumada com a cama alheia. Sabê-la ao lado o perturbava. Poderia telefonar para Suzana, perguntar se ela poderia atendê-lo, mas já era muito tarde. E também já fora ao seu apartamento na terça-feira. Não poderia se comportar como um rapazote impulsivo. - Oscar Nakasato
Satoshi carrega o fardo de um mundo que ensinou que e envelhecer é uma espécie de castigo: o que sobra quando tudo que te definia já não te serve mais? Entretanto, "Ojiichan" termina como um sopro de esperança no sentido de que a vida encontra seu estado de equilíbrio, apesar do sofrimento, medo ou moral. Como o trecho célebre de Guimarães Rosa diz: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Satoshi foi corajoso e nos ensina que, mesmo nos silêncios e recomeços, há espaço para a vida seguir seu curso.
Ler esse romance é, de algum modo, se preparar para o que talvez nenhum de nós queira encarar: que um dia também seremos esquecidos, que também esqueceremos. Que o mundo vai seguir quando nossas mãos já não derem conta de segurá-lo.
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