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"O que resta de nós" ou quando cicatrizes se encontram e a vida insiste em recomeçar

Atualizado: 31 de ago.

Virginie Grimaldi nos entrega, em O que Resta de Nós, uma narrativa que não se lê apenas com os olhos. Por Thaiane Machado

Mulher de pouca fé, da Simone Campos





















"Há momentos em que a vida nos despedaça…e ficamos sem saber o que fazer com os estilhaços. Carregamos silêncios pesados, medos que não dizemos, lembranças que não sabemos onde guardar. E então, quando menos esperamos, alguém cruza nosso caminho, não para nos salvar, mas para nos lembrar que ainda estamos vivos.


Iris, Theo e Janne descobriram isso: três destinos quebrados que se encontraram no mesmo instante de dor. Cada um trouxe suas cicatrizes. E, ao se olharem, perceberam que não estavam sozinhos. Porque às vezes, o simples fato de ser visto já é um começo de cura. O que parecia acaso, talvez fosse destino, o que parecia fim, talvez fosse recomeço. É no olhar do outro que muitas vezes descobrimos que ainda somos inteiros e no gesto simples — uma xícara de chá, uma caminhada, um sorriso inesperado — nasce um abrigo.


A ausência machuca, mas a presença acolhe e a presença transforma. Nós também estamos aqui assim: cada uma com a sua história, cada uma com a sua cicatriz e, ainda assim, todas reunidos, como quem costura um tecido com fios diferentes. Este encontro não é só sobre um livro. É sobre o que resta em nós, quando o outro chega e nos toca.


Que este círculo seja refúgio, que seja espaço de escuta, de lágrimas se preciso, mas também de risos inesperados. Porque quando nos abrimos ao outro, descobrimos que o que resta de nós… pode, na verdade, ser o começo de algo novo."



Há livros que não se limitam a contar uma história, mas se oferecem como espelhos: devolvem ao leitor não apenas personagens, mas fragmentos de si mesmo. "O que Resta de Nós", de Virginie Grimaldi, pertence a essa categoria rara. Sua narrativa é delicada e cortante, como uma ferida que se abre e, ao mesmo tempo, cicatriza diante de nossos olhos.


O romance acompanha três personagens que se encontram não por escolha, mas por sobrevivência. Jeanne, aos 74 anos, perde o marido depois de uma vida inteira de companheirismo, é obrigada a encarar a casa vazia, a rotina despedaçada e a memória que insiste em transformá-la em prisioneira do passado. Théo, jovem de 18 anos, marcado pela violência do abandono, é o retrato da raiva e da exclusão, carrega um coração em carne viva, sem chão onde apoiar os pés. Iris, aos 33 anos, atravessada por desilusões amorosas de um relacionamento abusivo, violento e tóxico, e pela busca de pertencimento, narra suas cicatrizes como quem tenta decifrar o próprio corpo e encontrar nele algum sentido de identidade.

"Fazia três meses que Jeane descosturava, ponto por ponto, aquela rotina. O plural se tornara singular. O cenário era o mesmo, as horas eram as mesmas, mas tudo parecia vazio. Até a melancolia desaparecera, como se sua vida inteira tivesse sido um treinamento para o luto que estava vivendo. Ela não sentia mais nada." - Virginie Grimaldi

Jeane, em busca de renda para manter as contas pagas após a morte do seu marido, resolve alugar um dos quartos do apartamento. O quarto acaba virando dois, depois de conhecer a história de Théo e Íris, fazendo com que os três se reúnam sob o mesmo teto. E o que poderia ser apenas convivência forçada transforma-se, lentamente, em uma experiência de reconstrução.


O estranhamento inicial dá lugar a pequenas frestas de ternura: um gesto de cuidado, uma conversa interrompida, um silêncio partilhado. A vida, fragmentada, encontra formas inesperadas de recompor-se. Jeanne descobre nos dois jovens uma nova família, tão improvável quanto necessária. Théo, que conhecia apenas a dureza, experimenta o alívio de ser cuidado. Iris percebe que as cicatrizes não definem por inteiro quem ela é (e elas também anunciam a possibilidade de recomeçar).


Os grandes temas da narrativa emergem como rios subterrâneos: o luto e a memória, que mostram como a ausência pode ser tanto prisão quanto consolo; a solidão, que parece insuportável até que é dividida; as cicatrizes, que deixam marcas permanentes, mas também são testemunhos de sobrevivência; as diferenças geracionais, que não afastam, mas geram aprendizado e acolhimento. Cada personagem encarna uma dessas forças, e juntos revelam que, apesar das perdas, sempre resta algo a ser vivido.

"No ano que vem, vou apreciar o ar na superfície, ver a luz das sombras, rir sob as lágrimas, detectar a beleza mesmo quando ela está escondida. Desejo a mim mesma a vida com todo seu sal" - Virginie Grimaldi

É nesse ponto que o romance se conecta de maneira profunda à ideia de experienciar. Em "O que Resta de Nós", nós nos encontramos dentro dele, em páginas que cabem as ausências que sentimos na pele. Nele, também cabem as conversas que não tivemos, as mãos que não seguramos, os abraços que ficaram no meio do caminho. Não importa se são lembranças de perdas que ainda não nomeamos, de amores que ficaram pelo caminho ou de silêncios que nunca tivemos coragem de quebrar. O livro nos faz tocar essas feridas, com a delicadeza de quem sabe que só cicatriza o que é olhado de frente.


"O que Resta de Nós" é uma dessas histórias que não se limita a narrar um enredo, ele nos devolve ao essencial: o viver se deixando atravessar e isso significa experienciar. Experienciar é sentir o frio na pele da ausência, mas também o calor de uma mão que se estende. É suportar a partida de quem amamos, mas descobrir que seguimos cheios deles em cada lembrança. É cair e se levantar, não porque somos fortes, mas porque alguém nos chama de volta, porque ainda há vida a ser vivida.


Esse livro nos mostra que experienciar não é escolher apenas o que é bonito, leve ou alegre. É também acolher o que nos parte ao meio, porque só assim sabemos que estamos vivos. O que resta de nós, no fundo, é isso. E talvez seja essa a beleza mais dura e mais verdadeira: não importa o quanto sejamos feridos, seguimos vivendo. Seguimos experienciando. Seguimos encontrando, na vida, razões para nos reconhecer uns nos outros. Porque no fim, não somos feitos de vitórias, conquistas ou perfeições. Somos feitos do que experienciamos.


Mulher de pouca fé, da Simone Campos

Grimaldi escreve como quem acaricia feridas. Sua prosa é íntima, próxima, capaz de emocionar sem recorrer ao melodrama. Ao narrar vidas que poderiam ser anônimas, ela ilumina o comum: o luto que todos enfrentaremos, a solidão que todos conheceremos, a necessidade de laços que nos constitui. E é justamente nessa universalidade que o livro se torna tão tocante.


O que Resta de Nós é um convite para experienciar a própria vida em sua inteireza, inclusive o que rasga e o que cura, o que parte e o que reconstrói. Ao final, resta a certeza de que somos feitos não do que perdemos, mas do que atravessamos. E que, apesar das cicatrizes, seguimos inteiros, porque seguimos vivos.




 
 
 

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