O "Fim" e um começo de ano sobre coragem
- Thaiane Machado
- 26 de jan. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 1 de nov. de 2024
Iniciamos a primeira leitura de 2024 com um livro chamado "FIM" e o tema de 2024 sobre coragem. Vou escrever um pouco sobre o porquê eu achar que Fernanda Torres é "puro suco de ironia".
Por Thaiane Machado
[para quem não leu o livro: CONTÉM SPOILER!]

[foto oficial: Bruna, Amanda, Jane, Priscila, Paty, Marie, Histéfani, Adriana, Camila, Alice, Imira, Aline, Ju, Cind, Thai, Hanna, Renata, Cris]
Depois de anos dedicados à dramaturgia, com trabalhos super reconhecidos em televisão, cinema e teatro, em 2013 Fernanda Torres lança o seu primeiro livro de ficção. "Fim" foi bem recebido pela crítica, foi indicado ao Prêmio Jabuti de 2014 e chegou a ficar entre o oitavo livro mais vendido no mesmo ano. Em 2023, ele voltou com toda a força após o lançamento da série, com o mesmo nome, pela Globoplay. Foi "Fim" o responsável pelo nosso primeiro encontro do ano em que o tema é "coragem" e, claro, que muitas camadas da leitura nos leva a pensar nesse ato tão difícil, mas tão necessário em nossas vidas. Afinal de contas, estamos falando de coragem em todos os sentidos, sem julgamentos morais ou a régua do certo ou errado. E sobre isso, "Fim" tem de sobra. Acompanhamos o dia da morte de cinco amigos: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro, entre agosto de 1990 e abril de 2014. Todos eles contando as suas histórias de desilusões amorosas e nas escolhas de vidas que resolveram tomar. ÁLVARO: impotente, melancólico, racista, egoísta, se separou da esposa (IRENE) depois de ser traído por ela. Não gostava de sexo e foi o último a morrer dos 5 amigos. A sua morte é irônica e fútil: aos 85 anos é atropelado na porta de casa, voltando do médico. O primeiro capítulo é todo dele, uma espécie de grande resumo sobre a sua vida e apresentação dos outros quatro amigos, suas respectivas tragédias, amores, desamores e fins.
Comecei a ficar brocha com a Aurora, a segunda mulher que arrumei depois da Irene. Minto, a coisa já não ia bem com a Irene, mas com a Aurora foi definitivo. Sofri uns bons anos, até que relaxei. Adeus hormônios, adeus garotas... - Álvaro/Fernanda Torres
SÍLVIO é imoral, hedonista, gostava de drogas, bebidas e orgias, Abandonou a esposa (NORMA) e os filhos para viver na boemia. Sofria de Parkinson (se recusava a fazer o tratamento) e morreu aos 75 anos com overdose, enquanto pulava carnaval na Cinelândia. Foi encontrado morto, quase como indigente, no meio de lama, xixi e "sobras de carnaval". Foi até o seu fim, de fato, com a vida de uma liberdade intacta que ele "planejou", ainda que socialmente não aceita.
Foi a Suzana que me fez entender que o homem nasceu para ser livre, e gozar, e foder, e se fundir com outros braços, outras bundas, e peitos, e coxas e paus. Não lembro bem que que aconteceu, só do êxtase, da realização [...]. Me deu vontade de seduzir a Ruth, a Irene e a Célia. E também o Ribeiro, o Álvaro, o Neto e, é claro, o Ciro. - Sílvio/Fernanda Torres
RIBEIRO é o esportista, rato de praia, o "gostosão" da academia que jogava vôlei e adorava tirar a virgindade das mocinhas (ou seja, pedófilo!). Amou a SUZANA, uma namorada gaúcha que o abandonou para viver com Sílvio (sim, seu amigo!). Não aceitava a velhice e a sua incapacidade de não atrair mais as "meninas novinhas". Seu maior medo era ser brocha como o Álvaro. Ao mesmo tempo, se mostrava um homem emocionalmente fraco por não ter casado, construído uma "família tradicional" e, ainda, por nutrir um amor passional por Ruth, a quem, de certa forma, ela abriu mão por saber que ela se apaixonara perdidamente pelo Ciro. Descobriu que com o Viagra ele poderia continuar sendo viril e, ironicamente, morreu de infarto enquanto tomava banho para um encontro romântico com uma mulher de meia idade.
O Viagra é tão revolucionário quanto a pílula, mas ninguém tem coragem de dizer isso [...]. Não notei a velhice chegar. É traiçoeira, a danada. Aos trinta, não se aparenta mais quinze, aos quarenta, desaparecem os sinais dos vinte, aos cinquenta, os dos trinta, leva uma década para realizar as perdas - Ribeiro/Fernanda Torres
NETO é de família pobre, conservador, tímido e honrado. Cresceu pelo seu esforço no estudo e trabalho, como todo homem negro nesse país. Se apaixonou por CÉLIA, com quem se casou depois de quase 2 anos de "joguinhos morais" entre conquistas, casar virgem e ser uma "moça direita". Tirou a sua vida, aos 62 anos, após ficar abalado com a morte de sua esposa. Já perto de sua morte, reflete sobre sua condição moral em ser fiel, trazendo à tona a dicotomia entre o amor e o ódio dessa relação. Sua esposa odiava os seus amigos e, nos últimos minutos da vida, chegou a culpá-la por ele não ter vivido a sua plenitude masculina por conta do seu amor por ela.
Passei o último ano achando que sofria de amor, mas era raiva. Eu não perdoo a sua mesquinhez. Eu fui um marido extraordinário, paciente, bom pai. O que você queria mais? A sua acidez se chama vaidade, Célia. Eu sou melhor do que você [...]. Eu passei os últimos meses esquecido do quanto eu detestava a Célia. Pena, agora me deu vontade de continuar sem ela - Neto/Fernanda Torres
CIRO é o galã, bonitão, inteligente, culto, carismático. Casou-se com RUTH embriagado de muita paixão. Depois de 10 anos de casamento, numa manhã cotidiana qualquer, descobre-se em uma crise existencial sobre ser fiel à sua mulher. Segundo ele, já conhecia cada parte do seu corpo e iniciou uma escalada de traições sucessivas, deixando a sua esposa depressiva (e com status de louca). Morreu após uma cirurgia para retirada de tumor no cérebro e foi infiel até no leito da UTI.
Eu acordei do lado dela, era um dia igual aos outros. Mas despertei antes da Ruth, o que não era comum. Fiquei deitado olhando para ela. Não havia centímetro quadrado daquela mulher que eu não conhecesse [...]. Minha supresa era perceber que nada em mim, nem um pelo, nem um poro, nem uma mísera célula ansiava por um pouco daquela mulher. - Ciro/Fernanda Torres
Por que eu acho esse livro uma grande ironia? Quando o leio sob o ponto de vista sobre a morte que a Fernanda escolhe contar. Antes de mais nada, preciso exaltar o quanto ela foi espetacular por conseguir mesclar narradores em primeiro e terceira pessoa, sem que isso nos cause uma grande confusão na compreensão da trama - e deixando muito claro a sua influência em obras audiovisuais em que isso é facilmente possível. Fernanda também foi espetacular em escolher falar de uma perspectiva extremamente masculina, de uma vida centrada na figura do "homem-macho-ativo". E falando de uma forma em que eles não são alvos de crítica, mas de um modo de pensar masculino socialmente aceito, especialmente no tempo cronológico das narrativas.
Entre passados e presentes da história, vamos à década de 1970 até 2014. Pulos cronológicos que nos despertam para o pouco tempo de avanço que tivemos desse olhar masculino sobre eles mesmos, em um combo de masculinidade tóxica, machismo e até o que chamo de "paucentrismo"(*). Todos os homens da narrativa sofrem das suas desilusões da vida, mas todas elas relacionadas ao sexo oposto. Não há tristeza, pesar, depressão pela perda de um emprego, por não ser um bom pai, por não conseguir realizar o sonho de comprar uma casa ou um sítio para viver as suas velhices. Todos eles (incluindo o padre Graça - falo já dele!) sofrem por serem homens que se comportaram como homens que não atingiram a sua masculinidade de alguma maneira: o impotente, infiel, não-monogâmico, não casou, não teve filhos, deixou de ser viril etc. O fim de todos eles é sob uma ótica sexualmente posta enquanto sujeitos socialmente machos. Dizer que isso é o certo? Não. Prefiro dizer que foi a escolha da autora e penso que essa é a grande sacada de sua escrita.
Ironias, também, estão nas mortes desses cinco amigos: o que ficou por último morrer atropelado em casa, enquanto voltava de uma consulta médica que o mantinha vivo; o garanhão com pinta de novinho morrer de infarto (por tomar Viagra) enquanto tomava banho para um encontro com uma mulher, para ele, considerada velha; o infiel morrer na UTI pedindo à enfermeira que sentasse em seu p*u; o porra louca no meio do carnaval, na lama e como um desconhecido que ele tentou ser para viver a sua vida ao seu jeito; o fiel morrer com raiva por descobrir que poderia viver melhor sozinho, sem a mesquinhez de sua esposa. Todos os "fins" se manifestam nas escolhas deles, certas ou erradas, de serem homens (ou serem homens diferentes do que gostariam de serem).
Por isso, discordo muito sobre o livro ser machista e penso que ele é essa grande ironia sobre ser macho...alias, o envelhecer desse macho. Não há romantismo sobre envelhecimento. Envelhecer é uma desgraça para o homem que resolve tomar viagra, que se tornou uma pessoa sozinha, para aquele que pensava que ter uma doença poderia ser um castigo de Deus por tudo que ele fez em suas orgias. Envelhecer, em "Fim", é o caos, a vergonha, a liberdade e a coragem. Ah...a coragem! Sim! De todos os tipos: desde o Silvio que resolve abandonar tudo para viver a sua vida em liberdade, a Irene que resolve casar e se divorciar de uma cara que nunca amou, do Álvaro assumir sua impotência e assexualidade, do Ciro em pedir para desligar os seus aparelhos na UTI; da Ruth em resolver viver plenamente para o seu casamento e, também, viver depois da ida definitiva do amor de sua vida. Sem esquecer da coragem do padre Graça, em largar o sacerdócio e escolher ter um fim diferente (ainda que algo tenha dado errado nos seus planos). Ironia é Padre Graça que um dia se comprometeu a servir a Deus, enterrou tanta gente e morreu querendo salvar a civilização. O capítulo final, "O Próximo", não é somente sobre o padre Graça ser o próximo a morrer, mas ele ser aquele que cumpriu a sua missão e ironicamente, teve o mesmo "fim" de todos os outros. O próximo, também, são todos os "álvaros", "silvios", "netos", "ribeiros", "ciros" que continuam por aqui, em 2023, tendo os mesmos dilemas de "homens-machos-ativos": a necessidade de casar, a obrigação de formar uma família e deixar herdeiros, ser infiel (ou ser julgado por não ser), ser viril, não mostrar fraqueza até o seu último momento em vida. É uma carga pesada para os homens, né? Eu acho. Talvez a Fernanda ache também em "Fim". Deixo abaixo o link para o trailer da série no Globoplay. Há elementos, intrigas, histórias e personagens diferentes do livro, afinal ela é baseada na narrativa da Fernanda, o que significa que não necessita ser fiel à obra. Na série, as mulheres têm mais voz, mais escolhas, estão mais unidas e compartilham dores - bons sinais dos tempos que vivemos hoje e que difere de 2013, quando o livro foi lançado.
Para quem quer falar de coragem...coragem é da Fernanda em se jogar na literatura e ser muito feliz no seu ofício. Sigamos!
(*) Fazendo uma brincadeira com o "falogocentrismo", em teoria crítica desconstrutivista (pós-estruturalista), é um neologismo cunhado por Jacques Derrida para se referir à postura, convicção ou comportamento baseados na ideia da superioridade masculina, simbolizada no falo.
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