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Heranças que pesam, silêncios que moldam em "Uma delicada coleção de ausências"

As dores que se herdam, os silêncios que moldam, a coragem de experienciar Por Thaiane Machado

Cada página de "Uma delicada coleção de ausências" é feita de fragmentos que parecem escorregar entre os dedos.


















Ler Aline Bei é entrar em um território de lacunas. Cada página de "Uma delicada coleção de ausências" é feita de fragmentos que parecem escorregar entre os dedos. Não há a abundância do discurso linear, mas a força do que falta - e é essa falta que organiza a narrativa, que molda os corpos, que sustenta a herança feminina ao longo de gerações.

"quando o circo chegou à cidade, aquele pedaço de ter­ra batida onde levantaram a lona finalmente ganhou seu segredo. noite após noite se manteve iluminado, e parecia tão natural naquela paisagem que é como se tivesse crescido depois da chuva, e circo fosse árvore ou coisa que vem da terra." - Aline Bei

"Uma delicada coleção de ausências" começa com Margarida ainda jovem, no tempo em que trabalhava como assistente do mágico Oberon no circo. É nesse espaço de encantamento e violência que se desenham suas primeiras cicatrizes: o fascínio da arte, a dureza dos bastidores, os afetos interrompidos. De lá, acompanhamos sua fuga, a maternidade conturbada e o retorno à cidade natal. O romance, no entanto, se passa sobretudo no presente, quando Margarida envelhece na pequena casa onde cresceu, agora cuidando da neta Laura. A filha, Glória, está ausente — fugiu anos antes, deixando a menina para a mãe criar. Entre as memórias do passado e as exigências do cotidiano, Margarida tenta manter a casa em pé, a neta protegida e a vida com algum sentido.


A narrativa alterna tempos: as lembranças do circo, as histórias da juventude, o abandono de Glória, a convivência com Laura. Surge também Filipa, vizinha e confidente, que dá a Margarida a possibilidade de amizade e escuta. Ao mesmo tempo, Camilo, o vendedor da feira, encarna a chance de afeto e companhia no presente. O livro se constrói nesse movimento de avanços e retornos, onde cada ausência é também uma presença — da filha que não voltou, dos homens que a marcaram, do tempo que se foi. O desfecho não é de resolução plena, mas de continuidade: Margarida segue, ao lado de Laura, entre lembranças e silêncios, reunindo em si as marcas de uma vida inteira de perdas e resistências.

"está na sua palma. (acaricia) ela é toda a atravessada por vazios e impermanências. algumas saudades. muitos arrependimentos. (olha para ela) na aldeia [...] as linhas de sua palma paarecem uma delicada coleção de ausências" - Aline Bei

O livro nos conduz pelas delicadas feridas da vida de mulheres que poderiam ser nossas mães, nossas avós, nossas filhas, ou até nós mesmas. Elas carregam maternidades que não foram escolhidas, laços entre mães e filhas que ardem mais do que acolhem, corpos que guardam cicatrizes visíveis e invisíveis. São mulheres em suas diversas fases, todas marcadas por aquilo que não tiveram, por aquilo que lhes foi negado, por aquilo que lhes coube sem terem pedido.


Filipa, Margarida, Glória, Laura. Quatro mulheres de uma mesma linhagem, quatro idades distintas, quatro modos de lidar com a vida. A fé como refúgio, a maternidade como peso, o abandono como destino, a adolescência como campo de perguntas sem resposta. Cada uma, à sua maneira, tenta suportar o que recebeu, mas a dor reverbera de mãe para filha como uma corrente. É um eco que nunca se desfaz, um ciclo que insiste em se repetir.

"agora que Filipa está ali, de certa forma Margarida se arrepende de ter ficado tanto tempo sem vê-la. poderia ter ido visitá-la, uma ou duas vezes por mês, e então agora teriam se visto sem se assustarem demais com as mudanças que notassem uma na outra" - Aline Bei

Nesse tecido de repetições, a maternidade aparece não como bênção, mas como condenação. É a maternidade imposta, não desejada, que pesa sobre o corpo e transborda em ressentimento. Os laços entre mãe e filha, em vez de cuidado, se tornam espaços de ruído e ausência. E talvez o que mais dói é perceber que o amor, tão esperado, pode vir atravessado pela incapacidade de oferecer o que nunca se recebeu.


Cada fase da vida feminina está ali: a velhice que se curva, a maturidade cansada, a juventude que foge, a adolescência solitária. Cada corpo, com suas marcas e cicatrizes, torna-se um campo de batalha entre o que se deseja e o que se herda. O corpo, nesse livro é lugar de memória, de ferida, de cicatriz que insiste em lembrar. E a própria literatura encarna esse corpo. A escrita de Aline Bei não é linear, é como se o texto respirasse junto das personagens, como se cada quebra de linha fosse também uma costura malfeita em uma ferida antiga, tornando a leitura uma experiência física, quase íntima, um convite a sentir junto.

"talvez envelhecer seja lidar imensamente com o próprio corpo, com esse estado de presença brutal, à beira do insuportável, um corpo que, de tanto já ter sido visto, agora precisa ser desvisto se os olhos dos outros não quiserem morrer por antecipação" - Aline Bei
Mulher de pouca fé, da Simone Campos

No coração da obra, uma tríade amarga: abandono, ausência, solidão. Essas palavras não são conceitos; são presenças que atravessam cada geração, ocupando a casa, os gestos, os silêncios. São os fantasmas que organizam as vidas das personagens, mais fortes do que qualquer presença concreta.


E é nesse terreno que a leitura encontra o verbo que nos move: experienciar. Não no sentido doce de viver plenamente, mas no olhar para as ausências sem desviar o olhar. Experienciar é sentir que a dor também pode ser herança. É reconhecer que o silêncio também se transmite como sangue. Mas experienciar é, sobretudo, ter coragem de perguntar: preciso repetir? O ciclo termina em mim ou continua adiante? Uma delicada coleção de ausências não oferece consolo nem finais luminosos.


O que Aline Bei nos dá é a consciência de que o que herdamos pode ser repetido, mas também pode ser rompido. O livro nos coloca diante do espelho das nossas próprias ausências e nos convoca a escolher, com coragem, quais delas terão fim em nós.




 
 
 

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